terça-feira, 27 de outubro de 2009

A Partida

Os salmões nascem no leito de um rio, de onde partem para o mar tão logo alcançam o tamanho necessário para enfrentar águas mais tempestuosas. Quando é chegado o fim do período de vida que a natureza lhes permite ter, voltam para o rio, quase sempre o mesmo onde nasceram, para lá fazerem a desova e a fecundação, e depois morrem. "A Partida”, de Yojiro Takita, nos mostra como um belo ritual pode transformar a morte em poesia. Se a morte é renascimento, cá eu tenho minhas dúvidas, mas que a vida é cíclica, lá isso é. Vida e morte estão presentes o tempo todo em todos os lugares. Tudo tem inicio, fim e recomeço. Pessoas, animais, plantas, solos, planetas, galáxias, buracos negros - expandindo-se e contraindo-se, como úteros a parir corpos celestes, sabe-se lá desde quando. A vida é um eterno nascer e morrer para nascer e morrer de novo. Mas não vivemos como eremitas a olhar o mundo do alto de uma montanha. Vivemos uns com os outros, de perto, sentindo. O amor não é uma abstração e por isso a morte nos causa grande dor, angústia, apreensão. Daí a importância dos rituais de passagem. A morte precisa ser sentida, encarada, vivida, digerida. Do contrario, corre-se o risco de não se matar os mortos; ficam como fantasmas, rondando nossas vidas, impedindo que sigamos adiante. “A Partida” nos convida a refletir sobre a morte como mais uma etapa da condição de estar vivo. O ritual de “passagem”, cerimônia íntima, feito em casa, entre as paredes que fizeram a morada daquele que vai, lugar onde as coisas, os objetos, lhe dizem respeito, o próprio embelezamento físico que é dado ao morto, dá a ele a dignidade dos vivos, um ato de respeito e amor. A celebração da morte vale como uma despedida, um acerto de contas, um último beijo, um último adeus, mas deve ser, antes de tudo, a celebração da existência daquele que fez parte de nossas vidas.

O Curioso Caso de Benjamin Button

O ser humano é o único animal que sabe que vai morrer. Isto explica muita coisa. A criação de Deus e a promessa de vida eterna, por exemplo. Não, não podemos admitir que a vida continue sem que estejamos aqui. A idéia da finitude é inadmissível para nós. Isto explica muita coisa. O desejo da eterna juventude, por exemplo. Temos medo de envelhecer, porque envelhecer nos aproxima da morte. O Curioso Caso de Benjamin Button, de David Fincher, trata tão delicadamente desta questão existencial. Não importa se envelhecemos ou rejuvenescemos. Não importa se o relógio anda para frente ou para trás. O tempo não pára, não pára nunca. A vida é tão efêmera, que ser jovem ou velho torna-se apenas um mero detalhe. No início e no fim de nossas vidas estaremos sempre frágeis e dependentes, sozinhos, ainda que num colo quente ou cercados de parentes e amigos. O nascer e o morrer são solitários. Viver. Esta é a palavra. Viver sem medo da morte. Este é o grande desafio. Filme lindo...

Capitu

Dia desses, estava eu com umas amigas e nossos respectivos maridos num jantarzinho básico. Papo vai, papo vem, surgiu o assunto Capitu. Eu, que tenho uma tese a respeito da traição de Capitu, desfiei-a para os demais, onde fiquei mesmo sozinha na minha argumentação. Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?Coincidências da vida... Uma das amigas presentes no jantar, a querida e antenadíssima Inês Garçoni, me enviou, direto de Brasília, via e-mail, um artigo do Diogo Mainardi sobre Capitu (http://veja.abril.com.br/idade/podcasts/mainardi/integra_171208.html). Era só o que eu precisava para, de uma vez por todas, postar a minha “tese” sobre a “cigana dos olhos de ressaca”. E vamos às considerações:Capitu traiu Bentinho. E não há mesmo nenhum enigma no romance de Machado de Assis. É fato. Está lá para quem quiser ler. A questão é: Por quê? Esta é a grande questão. A obra de Machado de Assis dedica uma especial atenção à alma feminina. Suas mulheres são delicadas, inteligentes, fortes, sensíveis, manipuladoras, sedutoras, donas de si. Sofia, Guiomar, Helena, Virgília, Capitu... Todas são dotadas de extrema doçura e perspicácia. Ora, o que Bentinho e Capitu mais queriam, após o casamento, era um filho. Um filho! Que é a única maneira de dois amantes fundirem-se, serem um só. Um filho! Que é a única forma de fazer-se eterno. E o filho não vinha, não vinha de jeito nenhum, comprometendo, inclusive, a felicidade do casal. Bem sabemos que em 1899 não havia inseminação artificial, nem como saber, entre os casais que não podiam ter filhos, qual dos pares não podia concebê-lo, a não ser pelas vias naturais. Capitu não hesitou em tentar engravidar de outro, que só poderia ser alguém muito próximo e que já tivesse dado prova de sua fertilidade. Pois muito bem. Capitu traiu Bentinho com a finalidade exclusiva de presenteá-los com o maior desejo de suas vidas. Ezequiel deveria ter sido a maior felicidade da vida de Capitu e Bentinho, não fosse a infeliz ironia de nascer a cara do pai, Escobar. Ah! A genética! O menino era a prova viva da traição. Bentinho não suportou. Cada vez que olhava para Ezequiel não havia como não se deparar com a traição da mulher com o melhor amigo. “Enlouqueceu”. Capitu amou Bentinho até o fim dos seus dias. Amou tanto que foi capaz de traí-lo para dar-lhes o filho tão desejado. E entre a fidelidade e o direito de ser mãe, não pensou duas vezes, ficou com a maternidade. Em seu lugar, que mulher, sabedora da felicidade sublime que é ter um filho, não teria feito a mesma coisa?
Quanto a Brás Cubas, creio que no fim, tornou-se ressentido por demais. Mas esta já é outra história...

Foi penas um sonho

Tristemente real. Angustiosamente real. Frank (Leonardo Dicaprio) e April (Kate Winslet) se conhecem ainda muito jovens, na “idade em que ainda se pode sonhar e especular sobre o futuro”. Ela, aspirante à atriz, vê seus sonhos frustrados pelo fracasso anunciado de uma improvável carreira enquanto ele tenta fazer o papel de marido ideal. Levados pela necessidade, mudam-se para um pacato subúrbio dos Estados Unidos, onde Frank vai trabalhar na mesma empresa em que seu pai trabalhou, sem grandes aspirações, durante toda a vida. Enquanto o Sr. Wheeler faz o seu serviço burocrático, April lava, passa, cozinha, no melhor estilo dona-de-casa e é ela quem tenta desesperadamente arrancá-los do lugar-comum. A possibilidade de fugir para Paris faz com que tudo se ilumine e a vida volte a fazer sentido. Mas as coisas não saem exatamente como planejaram e a realidade de suas vidas se impõe, despedaçando as ultimas esperanças de April. À parte a discussão sobre o modus vivendi do americano comum, porque a questão central, a meu ver, existencial, pode ser retirada do contexto americano: A historia se passa nos anos 1950 e nem por isso deixa de ser atual. Cristalizar-se numa vida comum, igual a tantas outras, sem paixão, ou lançar-se numa tentativa alucinada de felicidade que pode ser a única salvação da alma? O lugar seguro ou o lugar do desejo? Foi Apenas um Sonho, de Sam Mendes, é denso e cru porque nos deixa frente a frente com os nossos medos e os nosso sonhos. Como dizia Monteiro Lobato, ou melhor, a Emília: “A vida é uma piscada...”

O Leitor

O interessante do filme de Stephen Daldry é que, diferentemente de tantos filmes sobre o holocausto, repetitivos, diga-se de passagem, embora eu goste de alguns deles, o Leitor não se propõe a mostrar, em cenas deprimentes e desumanas, a barbárie por que passaram os judeus perseguidos pelo nazismo. De fato, o Leitor não é um filme sobre o holocausto, mas uma tentativa de entender e mostrar o que se passou na Alemanha nazista de Hitler. Tampouco é a história de uma analfabeta tentando encobrir a vergonha de não saber ler. Também não é a história de um amor que marcou a vida de duas pessoas para sempre. O filme é muito mais que isso. A personagem de Kate Winslet, Hanna, é simbólica e representa, independentemente da sua condição de analfabeta, a grande parcela de alemães que se submeteu às leis de Hitler. A pergunta é: Por que? Por que os alemães cumpriram as leis, a ferro e fogo, sem se rebelarem contra o status quo? O que aconteceu ali, naquela Alemanha? Até onde nosso comportamento é pautado por leis ou valores morais? E como algumas vezes a lei embaça um possível olhar sobre questões éticas e morais. A personagem do filme, como se pôde ver, não é um monstro, mas uma pessoa comum, também vítima de uma tirania que não foi capaz de contestar, como muitos não o foram, embora nem todos analfabetos. Em que estado de alienação mergulhou a Alemanha durante o período nazista?O Leitor é um embate entre lei e valores morais. Uma reflexão. O que verdadeiramente nos conduz? E o que devemos pretender de fato? Vingança ou justiça? E os estragos feitos? E os milhões de judeus mortos? O julgamento de uns poucos, como satisfação ao mundo, terá sido alguma forma de justiça? Simbolicamente sim, as satisfações precisam ser dadas quando se vive em sociedade. Mas devemos sempre olhar pelo outro lado da luneta, também. O povo judeu, perseguido e humilhado, teve desejo de vingança, ou justiça, ou reparação no processo de recuperação da sua dignidade e auto-estima. Os alemães que conseguiram, presos ou não, refletir e alcançar algum juízo de valor sobre suas ações tenebrosas, como foi o caso de Hanna, consumiram-se na culpa, aterrorizados pela consciência tardia de seus atos. O que o filme pretende é um pedido de perdão com direito de perdão. O que foi sutilmente sugerido pela personagem de Lena Olin, a judia que, em companhia da mãe, sofreu nas mãos de Hanna. Ilana Mather dispensou o seu dinheiro, mas guardou a sua caixinha, semelhante a que ela mesma tivera um dia, mais importante que o conteúdo. O filme é uma tentativa de reconciliação. Um ponto final. A superação de uma historia que fez mal a todos que participaram dela, perseguidores e perseguidos.